sexta-feira, 6 de abril de 2012
Sexta Feira Santa [por Khalil Gibran]
Hoje, e em cada sexta-feira Santa, a humanidade acorda de seu sono
profundo e, em pé ante as sombras do século, olha através das lágrimas
o Monte Gólgota para ver Jesus crucificado em sua cruz....
Mas assim que o sol se põe, a humanidade volta a ajoelhar-se perante
os ídolos que se erguem sobre todos os montes.
Hoje, guiados pela recordação, as almas dos cristãos dirigem-se de
todos os cantos do mundo às cercanias de Jerusalém para contemplar uma
sombra coroada de espinhos, que estende os braços até o infinito e
penetra, através do véu da morte, as profundidades da vida.
Mas, mal as cortinas da noite tenham descido sobre o palco do dia, os
cristãos voltam a deitar-se à sombra do esquecimento, embalados pela
ignorância e a indolência.
Hoje, e em cada Sexta-Feira Santa, os filósofos abandonam suas grutas
escuras, os pensadores, seus eremitérios frios, e os poetas, seus
vales de quimeras, para se reunirem numa alta montanha e escutarem,
calados e reverentes, um jovem dizer de seus assassinos:
"Pai, perdoa lhes porque não sabem o que fazem".
Mas, mal a quietude tenha apagado os ruídos do dia, os filósofos,
pensadores e poetas voltam a envolver suas almas nas mortalhas de
livros gastos.
As mulheres distraídas pelo brilho da vida, apaixonadas por jóias e
vestidos, saem hoje de suas casas para ver a mulher dolorida, de pé
frente à cruz como uma árvore flexível frente às tempestades do inverno.
Os jovens e as jovens que se deixam levar pela corrente da vida sem
saber aonde vão, param hoje um instante para contemplar a Madalena
Lavando com suas lágrimas o sangue que mancha os pés do homem erguido entre a terra e o céu.
Mas, quando se cansam desse espetáculo, desviam os olhos e continuam
seu caminho entre risadas.
Num dia como este, todos os anos, a humanidade acorda com o despertar
da primavera e chora pelos sofrimentos de Cristo; mas, depois, fecha
os olhos e se entrega a um sono profundo.
A humanidade é uma mulher que se deleita em se lamentar pelos heróis
do séculos.
Se fosse homem, regozijar-se-ia pela sua grandeza e suas glórias.
A humanidade vê Jesus o Nazareno nascendo e vivendo como um pobre,
ofendido como um fraco, crucificado como um criminoso, e chora-o e
lamenta-o.
E é tudo o que ela faz.
Desde há dezenove séculos, adoram a fraqueza na pessoa de Jesus,
conquanto Jesus fosse um forte.
Mas eles não compreendem o sentido da verdadeira força.
Jesus não viveu como um covarde, nem morreu sofrendo e queixando-se.
Viveu como um revolucionário, e foi crucificado como um rebelde, e
morreu como um herói.
Não era Jesus um pássaro de asas partidas, mas uma tempestade violenta
que quebra , com sua força, todas as asas tortas.
Jesus não veio do além do horizonte azul para fazer da dor o símbolo
da vida, mas para fazer da vida o símbolo da verdade e da liberdade.
Jesus não receou seus perseguidores, e não temeu seus inimigos, e não
sofreu nas mãos de seus executores, mas era livre à face de todos,
audacioso para com a injustiça e a tirania: quando via tumores
pútridos, puncionáva-os; quando ouvia o mal falar, impunha-lhe
silêncio; quando encontrava a hipocrisia, esmagava-a.
Jesus não desceu ao mundo da luz para destruir as nossas casas e, com
suas pedras construir conventos e eremitérios.
Não veio para tirar os homens fortes de suas ocupações e fazer deles
monges e padres.
Mas veio para insuflar na atmosfera deste mundo uma alma nova e forte
que destrói, até as fundações, os tronos elevados sobre os crânios e
desmantela os palácios erguidos sobre os túmulos, e derruba os ídolos
impostos aos espíritos fracos e humildes.
Jesus não veio ensinar os homens a elevar igrejas suntuosas ao lado de
casebres miseráveis e de habitações frias e escuras, mas veio para
fazer do coração do homem um templo, e de sua alma um altar, e de sua
mente um sacerdote.
Eis o que Jesus o Nazareno fez, e eis os princípios que pregou e pelos
quais se deixou crucificar por sua própria vontade.
E se os homens fossem mais penetrantes, celebrariam a data de hoje com
alegria, e risos e canções de vitória e de triunfo.
E tu, gigante crucificado, que olhas do alto do Gólgota as caravanas
dos séculos; que ouves o barulho dos povos, que compreendes os sonhos
da eternidade, tu és, sobre tua cruz manchada de sangue, mais
majestoso e mais soberbo que mil reis com mil tronos e mil reinos.
E tu és, entre a agonia e a morte, mais poderoso e mais temível que
mil generais com mil exércitos e mil troféus.
Tu és, na tua melancolia, mais alegre que a primavera com suas flores.
Tu és, nas tuas dores, mais sereno que os anjos em seu paraíso.
Tu és na mão dos carrascos, mais livre que a luz do sol.
A coroa de espinhos em tua cabeça mais formosa e mais augusta que a
coroa de Buhram, e o prego na palma de tua mão é mais imponente que o
cetro de Muchtary.
E as gotas de sangue que correm em teus pés são mais brilhantes que
as jóias de Astarté.
Perdoa, pois, a esses fracos que se lamentam sobre ti, em vez de se
lamentarem sobre si mesmos.
Perdoa-lhes porque não sabem que venceste a morte pela morte, e deste
vida aos que estão nos túmulos.
Khalil Gibran
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